top of page

Até breve, para não dizer adeus

Luciane Mustafá

Aterrorizado. É mais ou menos a perturbação que invadiu o jovem Said. “Como assim, baba?”, rebateu o primogênito.

Atordoado, perguntou-se se havia ou não cometido a desfaçatez de gritar com o baba. Será? Não sabia, pois a ordem do pai deixara-o transtornado.

Fim do expediente no armazém do pai naquele sábado de outono, onde Said trabalhava após a aula e nos fins de semana, empilhando sacos de grãos e tudo o que aparecesse, o famoso faz-tudo. Feliz com a noitinha que chegava, com os primeiros raios vermelhos alaranjados a despontar no horizonte em meio às montanhas do deserto, o jovem só pensava em Jamile, a menina linda que ele encontraria mais tarde em sua casa. Ultimamente, os pais ofereciam jantares ao compadre, pai da moça, e à família dele, com mais frequência do que antes. Said e Jamile tinham se tornado amigos recentemente, mas sem nenhum tipo de intimidade, pois os costumes não permitiam. E a intensidade dos olhares furtivos que trocavam quando a menina aparecia no armazém para comprar grãos para a mãe, excedia a qualquer toque físico, pois alcançava a alma.

“Vou pedir Jamile em casamento, assim que eu fizer 18 anos”, fantasiava o jovem dia e noite, enquanto ainda nem completara 16. “Vou conseguir driblar as últimas sanções, com certeza, trabalharei incansavelmente para o baba e me tornarei um competente gerente do armazém, respeitado, e finalmente darei uma casa confortável à minha esposa”, divagava o jovem.

 

O pai, porém, queria acabar com tudo.

“Said, este é um segredo nosso”, disse o baba enfático, com o dedo em riste, em uma tentativa de demonstrar a seriedade da conversa.

Se o pai fosse adepto a piadas e brincadeiras, certamente aquela seria uma, sem graça, é verdade. Mas não. O baba era homem sério, da época em que um aperto de mão selava um contrato e um compromisso.

Os olhos negros do baba o encararam, enquanto os ombros do jovem eram comprimidos pelas mãos fortes do pai, como se quisessem cravar aquela resolução em seu espírito, inconteste.

Ao sentir a garganta apertar e o ânimo vacilar, o velho soltou o rapaz e saiu de súbito, pois não podia, de forma alguma, demonstrar o sofrimento que emanava de si. Precisava inspirar no filho a coragem que lhe faltava, a enérgica tarefa que ele supunha não ser, ele próprio, capaz de levar adiante.

*

O ano era 1909, e a pequena cidade situada entre fendas e vales e rochas, junto ao mar Morto e Mediterrâneo no Oriente Médio, quase perdida em um ponto da Palestina, ardia de calor e tensão. Havia pouco mais de um ano que um persistente exército de rebeldes tinha tomado o poder, e seus horrores cresciam e se multiplicavam como as areias do deserto. Histórias aterrorizantes eram levadas e trazidas pelo vento com uma crueldade sem fim.

Khalil, que teve importante papel durante a gestão do governo deposto, vivia em constante tensão temendo represálias contra ele e sua família, mesmo quando as ameaças veladas aparentemente tinham sido esquecidas. Vivia em constante alerta, temendo pela segurança dos seus pares. Naquele momento, porém, o cenário mudara. Alheio à sua identidade e ao cargo anteriormente ocupado, uma nova e recente sanção surrupiara-lhe o chão, bem como o de quase todas as famílias da região.

O exército, então fortalecido e empoderado, impusera a lei da maioridade, o recrutamento compulsório às Forças Armadas da ocupação. O decreto exigia o alistamento imediato e impreterível de todo jovem do sexo masculino, tão logo completasse 16 anos. A vizinhança pulverizava mensagens latentes do filho de alguém, antes menino que jogava bola ou empinava pipa, ser obrigado, sob ameaça de apedrejamento em praça pública, a empunhar armas e matar homens, mulheres e crianças. Arrancados de suas famílias, os jovens recrutados deveriam obedecer a qualquer ordem por mais insana que lhes fosse confiada, incluindo delitos sexuais com meninas consideradas rebeldes. Os meninos-soldados eram submetidos a treinamento militar com armas pesadas e incansável doutrinamento ideológico. Como combatentes em meio ao desatino, muitos eram forçados a espancarem algum escolhido pelos homens sanguinários, numa ciranda de horrores traumáticos e irreversíveis. Havia ainda os postos de controle, patrulhas de rua, demolição de casas e prisão de crianças, como rotina ordinária da nova gestão, com uma gama de opressão e violência colonial não praticada havia anos na região.

Tentando manter a atmosfera bucólica da pequena cidade, muitos patriarcas mantinham a rotina familiar impenetrável, compartilhando entre eles, e somente entre eles, homens que deveriam ser o suporte de suas respectivas famílias, seus reais temores e presságios, carregados de um lamento sem fim. O novo código imposto à pequena cidade era uma sentença, clara e impenetrável.

“Atenção, patriarcas! Orgulhem-se de seus filhos. Todo homem, até seis meses antes de completar 16, deve fazer o alistamento militar e ter a honra de se tornar um corajoso e honrado soldado da nação. Orgulhem-se todos! Vocês não terão maricas em casa, mas um homem cujo destino é certo e irrepreensível — impor a ordem e o respeito. Às primeiras horas da maioridade atingida por seu filho, ele não será mais doutor ou professor, nem filósofo ou líder religioso. Será soldado, de corpo, alma e coração, até o fim!, quando os seus ossos retornarão às areias castigadas desta terra onde sol e luta não descansam.”

“Seu filho também não terá a chance de se casar com Jamile, a menina secretamente prometida a ele desde o nascimento de ambos, a quem o jovem Said estava naturalmente se afeiçoando, graças a Alá! Said também não se tornará o melhor capataz do armazém até se tornar gerente, para em um futuro promissor sentar-se na minha cadeira. O filho que cuidaria dos pais na velhice, como eu”, Khalil completou horrorizado.

O coração apertou e lhe faltou fôlego para caminhar de volta à casa naquele fim de tarde cinzento. Com certeza o céu desbotado e sem vida dos últimos dias absorvera o moral dos seus viventes, cujo pranto pungente despedaçava barbaramente os planos de uma vida e quebrava laços que deveriam ser eternos.

Naquela semana, contra todas as súplicas insanas de Khalil, o menino tinha acabado de completar 15 anos e 4 meses, e todos sabiam, mesmo que evitassem as palavras malditas e proibidas, que o prazo se apertava e muito em breve o jovem iria se alistar. O homem, cujas dores e aflições o tornaram precocemente velho, não dormia, a mulher não dormia, até o cachorro inquieto parecia pressentir a tormenta. À medida que horas e dias voavam com a força do tempo impiedoso, o pai de Said era atormentado por uma ampulheta tirânica, absolutista, que se agigantava e se fortalecia, cheia de acusações emblemáticas.

E? Era a pergunta que exigia urgência de resposta e lhe fazia adoecer não mais a alma, como também o coração, os ossos, os órgãos vitais. Todo o corpo era comprimido e acuado à espera de uma resolução intempestiva e nervosa. Khalil sabia que refrear o advento da “maioridade” do filho era tão insano quanto conter o fluxo da maré. E os dias amontoavam-se e traziam semanas, estas traziam meses.

*

Naquele fim de tarde, o homem perambulou entre becos e vales. De vez em quando um ambulante ou conhecido passava por ele e lhe acenava, ao que ele nem respondia, não por maldade ou grosseria. É que o espírito estava exaurido e a vista, embaçada de perdição. Se fosse um covarde, morreria. Oh, doce acalanto! Um último suspiro, e o homem se livraria de enfrentar aquela encruzilhada, a mais perversa da vida. Só havia uma vírgula, um contratempo que mudava tudo: ele não era homem de desistir ou fugir. 

Como seria a travessia? O filho sobreviveria? Conseguiria ele percorrer a pé os primeiros 10 quilômetros sem ser visto nem descoberto? E se a nau pegasse ondas gigantescas e sucumbisse na perversidade das profundezas de um mar desconhecido? E os possíveis ataques dos piratas? Diziam-lhe que o destino do navio era o porto de um país muito distante, uns diziam se tratar do Basil, outros, Basal. Mas o amigo Josafá afirmou que o navio iria para um país chamado Brasil e chegaria ao porto de... Santos. Como o filho se viraria nos primeiros dias, em uma terra distante, sozinho, sem o domínio da língua? Iriam os conterrâneos cumprir a palavra de apoiar Said nos primeiros dias até ele se restabelecer, conseguir emprego e abrigo?

Por fim, após divagar entre respostas e ausências, de suscitar mais dúvidas do que conclusões, recebeu um golpe. E o coração berrou a dor de ser esfolado sem escapatória.

“E se houver denúncia?”

*

Said acordou pleno. Estudava na única escola da região, em um prédio cheio de remendos, que tinha passado por uma reforma graças a um mutirão arquitetado pelo pai e outros conterrâneos. Por décadas, o lugar abrigou um grande hospital, evacuado às pressas pela quase destruição causada por um bombardeio, e abandonado por um tempo sem fim. Agora, com remendos e milhares de impressões digitais que se dedicaram à sua reconstrução, o lugar abrigava uma escola.

Nas longas caminhadas matutinas, o jovem adorava ouvir as histórias contadas pelo pai, que sempre finalizava com uma importante mensagem — “a dor pode ser transformada em esperança” ou “maldito o homem que confia cegamente em outro homem e se aparta do Senhor seu Deus”.

Said admirava o baba. Queria seguir os passos do pai, ser como o pai e transmitir aos seus descendentes a ternura e a segurança do pai. Diferentemente dos pais de praticamente todos os seus amigos, o baba ouvia os filhos e a esposa, Aisha, apesar dos costumes austeramente patriarcais da época. As quatro filhas não eram menosprezadas como nas outras casas e podiam se expressar dentro de um protocolo de contenção temperada com desembaraço e espontaneidade. Em ambiente externo, todos sabiam, era perigoso as mulheres da família se manifestarem. O pai poderia ser acusado de traição! Mas em casa era diferente. Havia uma hierarquia natural, sem imposição. Todos nutriam verdadeiro apreço pelo baba e seguiam seus conselhos por admiração. É certo que seguiriam de qualquer jeito, mas aquela deferência carregada de espontaneidade suscitava um arrebatamento que contagiava a casa. E fazia com que filhas, filho e pais, inclusive o cachorro da família, quisessem estar juntos. Sob a permissão do marido, que não só aprovava, mas incentivava, Aisha ensinava as filhas a cozer e coser, e em absoluto segredo, dava-lhes lições do abc, seguindo uma tradição familiar, ao longo de gerações. E Khalil seguia na plenitude das suas convicções, mesmo quando tinha enfrentado o pai e os irmãos, em um dos momentos mais dramáticos da convivência familiar. O dia em que decidiu, deliberadamente, abster-se dos problemas suscitados pela poligamia. Mantivera-se fiel aos seus próprios princípios de ser de uma mulher só, mesmo decepcionando os amigos, o pai e os irmãos. Apesar de críticas e represálias, Khalil permaneceu fiel aos seus valores.

“Que história é essa do baba me enfiar em um navio, para uma terra que nem sabemos onde fica? Uma viagem de no mínimo dois meses, se a tripulação conseguir chegar ao seu destino. E minhas irmãs, a mãe, o baba? E... Jamile?”, refletiu o jovem tentando organizar a notícia. Um nocaute, considerando a perversidade do golpe.

Transtornado, Said sentiu os estilhaços contínuos e agudos de cada tijolo do seu mundo a desabar. Um estrondo metálico e forte, um por vez, sem ecos. Cada sonho, cada projeto futuro, tudo se perdia em uma violenta tempestade de areia. E se fundia ao vento, levando todos os detritos para longe, a um lugar inalcançável pelo jovem, e se perdia na dureza do deserto.

Mesmo a contragosto, Said sentia-se decepcionado com o fracasso do pai em o proteger. Entrar no navio seria quase uma blasfêmia, uma desgraça que revelava a mais triste conclusão: o baba, habilidoso e infalível em gerenciar conflitos, tinha falhado.

E o jovem chorou. Sozinho entre as paredes do galpão, contatou sua dor. Tinha gosto de morte e desolação, ódio e derrota, e ele chorou, gritou, esmurrou. E nem assim, encontrou salvação. 

*

Como um senhor que envia o filho ao matadouro, na penumbra do deserto iluminado por estrelas, Khalil vagueava. Petrificado, percebeu que o nível de preocupação “se o filho irá” tinha ficado para trás, e o homem foi lançado ao patamar “operação colocar Said no navio”.

*

O sol da aurora castigou o espírito de Khalil informando mais um dia, mais uma peleja, mais uma tormenta. Cada dia que renascia com a aurora era uma oportunidade única na incessante ampulheta, que dissolvia o presente escravizado nas incertezas do futuro. E todo crepúsculo trazia consigo a hora do descanso, uma pequena dose de alento, tal qual uma vitória desmaiada.

O flagelo gradativo e incansável de Khalil possuía uma autofagia soberana, cuja ânsia jamais era suprida. E o velho homem, cansado, acordava sobressaltado, com dores agudas pelo corpo, sem nenhum farol que o resgatasse.

Nos dias que se seguiram, Khalil sussurrou com um e outro amigo, com o compadre do amigo e o vizinho do compadre. À medida que a ideia tomava forma e força, assumia ela mesma uma autonomia soberana, e havia mais e mais urgências a resolver. Encontrar-se com o contrabandista que estaria vendendo o bilhete da viagem era uma das demandas mais desafiadoras e penosas, sob o risco constante de denúncias e traições. Um único bilhete, com direito a uma passagem só de ida.

Às vezes, um silvo agudo perpassava sua alma, um lamento desordenado de autopunição com abnegação. E Khalil repreendia com rigor. O homem sabia que aquele era um caminho sem volta nem arrependimentos. Precisava ser prático para operacionalizar e garantir com êxito absoluto a partida do filho, como também a integridade e segurança da família inteira.

Era tudo ou nada.

Em uma corrida frenética, Khalil tinha juntado nos últimos noventa dias e às custas de rígidas economias, dezenas de moedas de ouro que seriam presas por ele mesmo na cintura do filho e escondidas também em um fundo falso de sua única mala.  

Agora faltavam cinco dias para a travessia. Said deveria trabalhar normalmente no armazém, após os dias rotineiros na escola. Para evitar suspiros e emoções incontroláveis, o homem tinha escondido do próprio filho a data precisa da partida. Isso lhe doía como golpes, mas a maturidade o havia doutrinado para as ciladas de um coração atormentado e, portanto, incontrolável.

A nuvem opressora que pairava sobre o lar se dissolveria em um desfecho célere e sigiloso, deduzia Aisha, mãe de Said. Sempre confiou na habilidade do marido em gerenciar crises, mas aqueles tempos eram mais sombrios do que outros. Seu coração vencido captava palavras inauditas e absorvia a inquietação do marido e o abatimento do filho. Tinha medo das respostas às suas indagações. Assim, sob a opressão de um turbilhão sem fim, a mulher perambulava entre dias e noites, como uma sentinela a temer um único e talvez golpe mortal.

Pesaroso, Khalil tinha pedido a Said que fizesse uma pequena mala e a escondesse em um fundo secreto no escritório de casa. Nos últimos dias, o jovem deveria soltar pipa e jogar bola com os amigos, em um rito secreto de despedida. Cada sorriso trocado com as irmãs, com os primos Aban, Ibrahim e tantos outros deveria ser um íntimo adeus, bem como cada celebração de gol durante as partidas. O jovem deveria abraçar a mãe e a ela fazer as mais profundas declarações de uma vida inteira, para não morrer de prostração. Até as briguinhas fúteis e bobas com os meninos da rua deveriam ser reverenciadas como oportunas saudações.

E em meio a tudo isso, haveria o jantar com Jamile em sua casa. Sabia que a despedida de Jamile seria um ritual macabro, que o fazia irromper em uma tristeza que nascia nas entranhas e acinzentava o jovem por dentro. Um dia que deveria ser comum, uma ceia trivial, para quase todos. Mais uma noite em que a lua os teria saudado com sua soberana e contínua jornada. Para Said, porém, aquele jantar seria uma sentença. Um doloroso e indizível adeus. 

*

Aquele dia chegava ao fim, com a escarlate tingindo o horizonte de fogo e sangue, acusando Khalil de uma heresia sem perdão. Em poucos minutos, o compadre chegaria com Jamile e o restante da família.

No tilintar dos talheres, Khalil sentia o fôlego faltar. Olhava para Jamile, indiscutivelmente fascinada por Said. A menina era a nora dos sonhos do velho homem. Presente de Alá! Evitou olhar o compadre nos olhos, pois o silêncio frente ao terrível segredo que guardava de todos era como uma traição. Said, calado, era quase uma estátua com um sorriso apático.

“Said, coma o cordeiro, filho”, recomendou Khalil, que havia pedido à esposa para preparar o prato preferido do filho.

“Não estou com fome, baba, obrigado”, respondeu o rapaz.

“Está, filho. Está com fome, e coma, por favor”, pediu incisivamente o pai.

Khalil olhou à volta. A comida entalada, quase o envenenava. Não parava de pensar na esposa, nas filhas, em Said. Poderia ele decidir o futuro de todos? Estaria ele brincando de ser... Deus? Seria punido à altura do seu egoísmo? Como privar a esposa daquele segredo indesculpável? Como a olharia nos olhos no dia seguinte, quando a denúncia viria do silêncio atípico da casa ao alvorecer? Onde estariam as risadas do filho? Como viver sem a presença de Said, o menino que o ajudava no armazém, que o enchia de orgulho e admiração.

Sentado em seu lugar de honra, a garganta apertou, e Khalil transferiu a vertente das lágrimas para algum canto perdido dentro dele, e vendo-se incapaz de se controlar, comprimiu as unhas na carne das mãos, até que a dor conseguisse resetar as lágrimas arrebatadoras.

Finalmente o jantar chegara ao fim. Havia conversado com o compadre quase no automático, é verdade, mas não iria exigir muito de si naquela noite, considerando o abismo em que se encontrava.

Na penumbra do jardim, espiou as mãos do jovem filho tocarem as de Jamile, em um ato quase erótico. E os olhares dos jovens se cruzaram em segundos processados por horas, em um momento sem fim.

Quando todos foram dormir, inclusive Said, Khalil não encontrou lugar, e seu corpo respondeu à pressão com náuseas, taquicardia e sudorese, além de uma aguda falta de ar. Eram 21 horas, e ele deveria acordar o filho às 23 horas, quase fundir as moedas de ouro ao corpo de Said, especialmente na cintura e nos tornozelos, e à meia-noite, na surdina da noite, partiriam rumo ao esconderijo do contrabandista. O grupo seguiria a pé, à 1 hora, devendo chegar ao porto pouco antes das 4 horas. Os que não acompanhassem o ritmo do comboio seriam deixados para trás. O navio zarparia às 5 horas. 

Naquele momento, tão perto da execução do plano, Khalil teve medo da saudade que sentiria do filho e foi tomado de uma amargura ferina. Em puro desespero, saiu pelo jardim, mas aquilo não aliviou nada. Quis gritar, berrar, mas o que diriam os vizinhos? Assim o homem andou, perambulou, andou, e chegou a um monte deserto, fora da cidade, iluminado pelas estrelas que povoavam o céu.

Respirou e fechou os olhos. O vento tocou-o com mansidão, como um consolo. Sentou-se em um tronco tombado no chão, contemplando o vale prateado do deserto. E conversou com Alá. Rasgou o coração ao seu Deus, e com abnegação estoica, própria dos grandes, entregou o filho. O primogênito, o filho amado. Com um pranto profundo pediu ao seu Deus que guiasse Said em segurança ao destino desconhecido. Que ajudasse o filho a vencer a primeira etapa da travessia, que ocorreria dali a poucas horas, sem ser visto nem descoberto.  

E ao chegar a Santos, ao porto cujo nome não era só de um santo, mas de muitos, que o seu Deus conduzisse Said pelo caminho da virtude. E o fortalecesse, renovando-o com a força e a perenidade do sol. Repetiu a oração tantas vezes fossem, trocou a palavra virtude por bondade, noutras, por generosidade, também por empatia e prosperidade. Em outras tantas, acrescentava a mulher com quem o filho deveria se casar e constituir família, bem como os amigos escolhidos e os compadres. Finalmente, Khalil pediu ao seu Deus pelos netos, filhos de Said, que deveriam ser criados no caminho da verdade.

Meio afogado de dor, meio anestesiado de fé, Khalil tentou eternizar aquele momento em uma súplica. E ele viu nas areias do deserto iluminado por lua e estrelas, o presente e o futuro do filho, a redenção e remissão daquele ato radical, imperativo. Meio letárgico, meio em transe, ouviu as risadas dos netos, a voz gentil da nora que ele jamais conheceria ou de quem talvez nunca tivesse notícias. E o principal, que o levou a um pranto de perder o fôlego — sentiu o perdão da esposa. No silêncio das areias, em meio a montes e vales, o silvo do vento tocou-o com a indulgência da mulher. Concluiria ela, posteriormente, em prantos dolorosos, mas carregados de resiliência, que jamais ela teria conseguido disfarçar das vizinhas, nem mesmo das filhas, as feridas abertas de seu coração, em meio aos últimos preparativos da partida do filho. Sabia que, como vampiros insaciáveis e sedentos, os guerrilheiros não perdoavam traidores.

Uma última lágrima. E o homem agradeceu ao seu Deus por conceder ao filho aquela rota de fuga.

*

Khalil tirou a mala do esconderijo. Acordou gentilmente Said e o preparou. Pegou um gorro e colocou na cabeça do filho, como se fosse um talismã, um laço eterno entre eles. O menino chorou baixinho, conformado, inconformado, resignado. Pai e filho fizeram a travessia até a casa do contrabandista em silêncio, mas abraçados. Seus corpos colados, quase fundidos, não se soltaram um segundo. De vez em quando o pai bagunçava o cabelo do filho mexendo no gorro, e eles riram, tentando descontrair. Em poucos minutos alcançaram o esconderijo, e o grupo sairia em minutos. Khalil então repetiu tudo o que já dissera infinitas vezes ao filho, sobre ter cuidado com as moedas de ouro e preservar, acima de tudo, a honra e a generosidade, virtudes que dão sentido à vida. O homem reforçou os cuidados dos conterrâneos a quem confiava o filho, o que Said deveria fazer ao chegar a Santos, entre outros tantos conselhos.

Por fim, o contrabandista decretou a partida. Pai e filho choraram um lamento sem fim e se despediram.

Aos primeiros passos do grupo, Khalil gritou “Said!” e correu alcançando uma última vez o filho. Abraçou-o fortemente disposto a não mais soltá-lo, e já não foi mais ele, mas o coração que sussurrou.

“Até breve, para não dizer adeus!”

 

*Dedico este conto ao meu honrado e amado avô, Hassan Mustafa, que desembarcou sozinho no porto de Santos, no início do século XX, prestes a completar 16 anos. Se chegou ou não com suas moedas de ouro, você poderá conferir no romance a ser publicado em breve com o mesmo título.

@escritoraluciane

Luciane Mustafá é Licenciada em Música e Bacharel em Musicoterapia, EMAC-UFG, e especializada em Gestão de Pessoas-UGF. Possui romances e contos publicados, e é membro da atual diretoria do Sindescritores DF. O romance “Uma Vitória Interrompida”, 2020, recebeu MEDALHA DE OURO, 24º International Latino Book Awards (ILBA) e a coletânea de contos “Jovens & Sábias”, 2021 recebeu MENÇÃO HONROSA no mesmo concurso. Ganhou 2º LUGAR com a crônica “Dama Literária-Folhetim Imperial”, Prêmio Antologia 200 Anos de Independência, 3ª Ed, SECDC/SECULT/MTur-2022. O primeiro romance "O Despertar de uma Sinfonia" foi publicado em 2015.

bottom of page