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Ressignificar

Luciane Mustafá

                                                                                                                  Brasília, 27 de fevereiro de 2020

 

“Vem aí a 10ª edição! Só para as muito especiais!”

Sentada no meu imponente escritório, após reunião rotineira com o setor financeiro do meu grupo empresarial, eu analisava o esboço do convite do meu 56º aniversário. Catorze de março de 2020, sábado, uma tarde propícia para celebrar mais um ano de vida e algumas conquistas, especialmente a recente inauguração de mais um restaurante em um dos órgãos mais cobiçados e respeitados da capital federal. Além de espaçoso e lindo, assumir esse restaurante legitimava, pela exigência de regras e detalhes, que não éramos bons, mas excelentes. A energia de todos, desde os diretores, passando pelos chefs e auxiliares gerais, era de realização plena, quando você olha ao redor e tem uma certeza — fazer a coisa certa.

Com tantos afazeres, eu também organizava o lançamento do meu décimo terceiro romance. Entre falta de tempo e suspiros, eu escrevia por hobby, amor, devoção. Quase uma oração.

Os filhos iam bem, obrigada. Eu já tinha superado a morte repentina da minha mãe, e a vida seguia calma e segura.

Seria a 10ª edição de uma celebração diferente, desde que eu tinha inventado arteiramente uma festa com amigas. Clube da Luluzinha. Leve como era a vida, concluí que a cada ano a lista das convidadas aumentava.

Eu ainda divagava se faria a festa no jardim de casa ou em um dos meus restaurantes, quando meu marido e sócio interrompeu meus pensamentos.

“Espere a reforma do novo restaurante. Estou voltando de lá. Previsão do término da obra é no final de março! Te garanto que valerá a pena”, finalizou, piscando.

O homem a quem eu admirava. Marido, pai e empreendedor. Conseguia fundir tudo e dar numa bela sinfonia. Comandava uma cadeia de restaurantes industriais que atendia renomados hotéis e inúmeros refeitórios de escolas, empresas e órgãos públicos em Brasília. O novo restaurante cuja reforma finalizaria em março ficava em um luxuoso hotel, em que nós, superando as exigências do contrato e por nossa conta e risco, inserimos no cardápio do café da manhã, sucos verdes, bolos e pães veganos e de alfarroba, tortas suculentas sem glúten, além de leite de amêndoas, aveia e amendoim. O restaurante que era a menina dos nossos olhos onde, inclusive, o administrativo do grupo funcionava.

*

Em forma de ecos eu ouvia notícias mórbidas e inconvenientes sobre um vírus que teria estragado nossa viagem de férias com as crianças — jovens de 16 e 17 anos, diga-se de passagem — se os passaportes delas não tivessem a expirar. Que bom seria se tivéssemos realizado o sonho do caçula de conhecer a China e o Japão, em dezembro de 2019. Uma viagem atrevida, inalcançável a alguns, de quase oitenta dias. Nossa recompensa pela dedicação exaustiva às empresas e às tarefas rotineiras. Faríamos dois longos cruzeiros intercalados com visitas a várias regiões do continente asiático.

“Os dois cruzeiros que contratamos estão, há semanas, presos em quarentena, cada um em um porto. Centenas de membros da tripulação foram contaminados pelo coronavírus e todos estão presos em suas cabines e suítes, sem poder sair nem ter contato com ninguém. Imagine se estivéssemos lá!”, disse meu marido.

Mesmo ciente do óbvio, as informações do meu marido continuavam inacessíveis à perfeição do meu mundo.

E tudo fluía colorido.

Eu tinha perdido meu pai tão logo nasci, prematura, de infarto motivado afoitamente por uma ansiedade e preocupação desmesurada com minha saúde e a da mamãe. Saí de um ventre cavernoso e quente, enfrentei os quadris estreitos da minha mãe e caí na aridez de uma terra sem pai. Não conheci sua voz ou senti seu cheiro. Lembranças do meu pai eram sombras de suposições, um emaranhado de suplícios de tentação a conjecturar experiências. Risadas e abraços hipotéticos, possuídos de um lamento sem fim. 

A mãe determinada preencheu com afinco o vazio cortante da falta de pai e marido, e assumiu os cuidados comigo e meu irmão, dois anos mais velho.

Mais tarde, adulta, tonteei com outro baque, petrificada. Uma dor amortecida inundou-me. A menos que eu morresse de repente e fosse sugada de onde vim, eu enfrentaria mais uma perda, e como a mãe era pai e mãe, meu pesar seria exponencialmente amplificado. Curiosa e indomável, escarafunchei meu abismo procurando solução. Considerando o apego tresloucado do ser humano à vida, não importando as suas condições, o desvario dentro de mim corroeu-me as entranhas. Coisa incompreensível a morte. Por ora, desisti, afinal eu precisava trabalhar e dormir. Bom e ruim, certo e errado, vida e morte. Qual o limite de um pressuposto sem que extrapole outro? Deixemos para a Filosofia esse desafio.

 

Eu tinha até esquecido o assunto por um tempo. E em uma dessas manhãs quando o dia esquece de acordar, na desbotada luz da aurora, pensei no pai, na mãe, na vida. Em mais ganhos do que perdas. Com certa relutância, passei um tempo absorta em aceitar que aquilo que não consigo combater ou evitar, aceito. E pronto. Teria outra forma de fugir? 

Vi que cada dia a mais com minha mãe era uma dádiva, um hiato intangível e imperturbável no mundo. Experiências carregadas dos achismos que eu nunca viveria com meu pai. Como eu poderia dar voz a um egoísmo esmagador e sofreria a dor de perdê-la tendo desfrutado sua companhia durante toda a vida? Dei a ela o colo dos meus filhos! Seria justo eu sofrer a perda da minha mãe, quando um segundo a mais do fôlego perdido do pai teria sido um tesouro resgatado nas profundezas de uma dor que de tão grande não tinha nome?

Nós fazíamos aniversário juntas. Catorze de março, a data que era minha e dela.

“Parabéns, minha filha!”

“Parabéns, melhor mãe do mundo!”

Eu era o presente dela. Ela, o meu.

Foi no final de 2018, uns quatro meses antes de a mãe dormir serena e não mais acordar, que tive essa surpreendente revelação. Talvez uma força divina me arrebatou com sons celestiais. Minha mãe estava ao meu lado em certa manhã e percebeu que um marco se instalara. Não gostava de falar de morte, mas sabiamente sorriu.

“Finalmente você entendeu e aceitará com graça que, no momento certo, seguirei o meu destino”, afirmou olhando-me nos olhos. Os grandes olhos da minha mãe me hipnotizaram a alma e ordenaram decisivamente que eu não sofresse com o ciclo inevitável da vida — existir, viver, fazer acontecer!, e morrer. 

*

Aos poucos, os noticiários informavam novas e crescentes contaminações, o Brasil ainda não tinha fechado as fronteiras como tinham feito muitos países, e eu seguia minha rotina, meio apreensiva, já que o mundo começava sensivelmente a padecer daquele mal... Seria vírus, bactéria, um monstro que se propaga como os Gremlins? E como era mesmo o nome? Alguma coisa com corona. Não tinha certeza, pois eu seguia evitando notícias trágicas, mas acho que tinha esse nome.

Mais e mais, manchetes penosas aproximavam-se de nós. Meus distantes e desconhecidos conterrâneos da Itália estavam em pandemônio. Todos os jornais de Brasília e grupos de WhatsApp pipocavam uma única mensagem, de mil maneiras diferentes, sobre a Covid-19. Aprendi rapidamente o nome da coisa que pararia o mundo e transformaria bilhões de vidas, quer pela falência financeira, emocional ou... vital.

 

 

Em 5 de março de 2020, o governador Ibaneis confirmou à imprensa o primeiro exame positivo da Covid-19 na capital federal. Era uma mulher, que tinha chegado de Londres com o marido, que a acompanhou ao hospital. Nesta época, o Ministério da Saúde confirmou oito caso de Covid-19 no Brasil.

E os grupos pipocavam o nome, as imagens e o endereço do marido, também diagnosticado com o novo coronavírus, que continuava a andar livremente a todos os lugares, sem proteção, inclusive com idas ao hospital onde a mulher estava internada. Foi um pandemônio conter os inflados que queriam visitar o cidadão em sua residência... Até que a justiça se manifestou e ordenou, sob multa diária de R$ 5 mil, que ele não saísse do isolamento até testar negativo em um novo exame.

Enquanto isso, os meios de comunicação mostravam mortos amontoados em ruas do mundo, sem que nada pudesse ser feito. Situação de guerra e seus horrores começaram a emanar das entranhas da terra, e sugar qualquer um que estivesse ao alcance da fúria.  

Mas ainda estávamos na bolha. A bolha suscitada pela vida tranquila e acalentadora do Lago Sul na capital federal. 

 

*

                                                                                                                         Brasília, 11 de março de 2020

Eu refletia se seria feio manter a tradição anual das minhas celebrações, mesmo que fosse uma festinha íntima em casa, com meia dúzia de amigos. Nada de 10ª edição nem tochas iluminando o jardim, nem música ao vivo com banda e risadas encorpadas por umas 70 mulheres juntas, despreocupadas e desestressadas. Como uma menina pega em desacordo e sob um mantra íntimo que retirasse o peso morto, resolvi celebrar o meu aniversário com exatos 28 amigos e familiares. Ressalte-se que cinco declinaram do convite devido a esse vírus silencioso e perigoso, não sabemos direito o que é, obrigado. Um casal, muito próximo a mim, informou que chegaria na manhã do dia 14 da Alemanha, pois foram buscar os pais idosos alemães e informaram que em respeito aos convidados e a mim, não iriam. Sim, claro, agradeço a gentileza. Época inusitada, em que amigos deixaram de se ver em nome de respeito e consideração.

E exatamente na noite de 11 de março, nosso governador Ibaneis decretou o lockdown, a primeira metrópole do país a tomar a primeira atitude drástica, que seria modelada por todas as regiões do Brasil nos dias seguintes.

                                                                                                                         Brasília, 26 de março de 2020

 

Havia quinze dias que meus filhos estudavam online, em casa. No começo, foi uma luta para fazê-los entender que ainda que estivessem em casa, o propósito não era passar longas manhãs dormindo, como se não tivessem compromisso.  

À noite, no silêncio melancólico da casa escura, eu remexia vagarosamente, quase como um ritual macabro e solitário, as panelas do jantar preparado pela cozinheira, prenunciando mudanças. Havíamos nos despedido sem saber o dia em que ela voltaria, nem mesmo sabíamos se nos veríamos novamente, com as incertezas do momento.

Seríamos atingidos por uma onda de doença tal qual a peste negra ou a gripe espanhola? Haveria guerra civil? Tornaria o mundo um deserto apavorante tal qual no filme “Mad Max”, que tanto atormentou a minha adolescência?

A vizinha, a irmã ou a colega. Ninguém, nem mesmo os melhores médicos e especialistas do mundo conheciam os fatos seguintes.

Eu pescava conversas soltas no WhatsApp e lamentava os acontecimentos que sensivelmente abalaram famílias, cidades, o mundo, quando meu marido chegou e jogou, inexoravelmente, o vírus em nossas vidas.

“Um dos nossos restaurantes foi fechado hoje, no final da tarde. Um terceirizado passou mal e saiu de lá de ambulância e uma hora depois, recebemos o e-mail com a informação de que o órgão inteiro será fechado a partir de amanhã.”

“Amanhã?”, perguntei no automático, um gosto ácido e nauseante golpeou o meu estômago.

“Sim. Já providenciei a mudança do almoxarifado para os outros restaurantes, que, apesar de estar com o público reduzido, devido às imposições de distância entre as mesas e o lockdown, ainda estão funcionando”, respondeu tentando manter calma.

Tremendo e temendo, tropecei em nada. Eu sei. Eu tinha perdido as forças diante de um mau agouro. Havia uma tonelada e meia de proteína naquela unidade. Proteína, insumo altamente perecível. Mais o infortúnio de um investimento de R$ 800 mil na inauguração, três meses antes, e a expansão de 40 novos empregos, além dos veteranos designados para gerenciar as novas equipes. Naquela noite eu não sabia, mas seriam gastos mais R$ 800 mil para fechar só essa unidade. E os desempregados... Mais de 40 famílias.

E os outros restaurantes, seguirão... o curso do mundo?!, indaguei temerosa.

Pergunta que nega o direito de resposta, mas é dona do destino. E nos provoca sem dó, e persegue até acuar a presa e pôr as cartas na mesa. Como fera sedenta por sangue, dilacera a carne e responde que sim, aos poucos, Europa, Ásia, América, ilhas. O mundo inteiro pararia.

O silêncio no jantar, exceto pelo tilintar dos talheres, foi cortante.

“Vai ficar tudo bem”, soltei rapidamente essas pérolas tentando apoiar o marido.

Soou tão raso, que tentei buscas as palavras de volta e as engolir, como a carne intragável na garganta. No fundo, acho que só tentei ser quem sou: o porto seguro da minha família.

Em um silêncio constrangedor, as lamúrias frívolas de um cotidiano rotineiro e desmaiado de extremos tornaram-se tão... diminutas. Eu via as amigas queixarem-se de suas unhas malfeitas, do vestido cuja numeração perfeita tinha se esgotado na loja, do carro cheio de compras de supermercado para esvaziar... Negligências que conduziam a humanidade para onde?

Filhos e marido, cada um se refugiou em seu quarto, no seu próprio casulo. Como é bom termos um refúgio para onde sumir, às vezes. Mãe nunca pode. Mãe sempre tem urgências a realizar e executar. Fiquei na sala iluminada indiretamente por um abajur, abandonada. Contatei meus medos e vi, um por um, os enormes salões dos nossos restaurantes fechados.

O fim do show.

Paulatinamente, a orquestra caminha para o coda, as luzes diminuem, os funcionários despem-se dos uniformes que orgulhosamente trajam em design italiano, encomendados na feira internacional de hotelaria de Milão. Eu mesma arrematei os últimos detalhes — a boina amarela, o avental preto, o novo logotipo da empresa, com um visual mais moderno e estiloso. O imponente e exclusivo modelo que os chefs trajariam, diferente do restante da equipe. Um a um, eles abandonam suas túnicas e deixam o grande palco. Atônitos, um tanto anestesiados, deixam os sinais daquilo que passaram a vida fazendo. Os chefs, os gerentes, os confeiteiros, os garçons. Os saladeiros e seguranças, os caixas e auxiliares de serviços gerais, todos os coadjuvantes misturados aos protagonistas formando uma mesma massa compacta de dor e incerteza. 

Uns diziam que a culpa é dos chineses que se alimentam de morcegos. Outros, que tudo não passou de uma terrível conspiração dos EUA. Havia os que arriscavam afirmar que foi um ciclo próprio da natureza para defender o planeta, como as pestes famosas que exterminaram parte da população mundial.

O mundo parou.

E as vidas continuaram tentando prosseguir, buscando fôlego e salvação. Com choros, lamúrias, saudades e desolação. O mundo parou, e houve união também. Pessoas ajudaram idosos atemorizados em suas casas, inclusive levando a eles comida e remédios. Médicos e enfermeiros enfrentaram o vírus, e muitos deles morreram para salvar vidas. Motoristas, bombeiros, policiais, atendentes de supermercados e farmacêuticos continuaram a se sacrificar em nome da civilização.

A Covid fez vítimas e levantou heróis também.

*

                                                                                                                 Brasília, 01 de novembro de 2022

“Tchau, mãe, te amo!”

“Tchau, mãe, até mais tarde!”

Gritam meus dois filhos, já crescidos, seguindo o seu caminho. O primogênito, rumo à faculdade de engenharia no CEUB e o caçula, para a faculdade de medicina, na UnB.

Despeço-me deles com a mesma urgência e cuidado de quando eram dois garotinhos saindo com suas lancheiras para a escola com nosso motorista, apostando quem chegaria primeiro. 

Quase três anos após o lockdown, sobrevivi a algumas mudanças.

Fechamos permanentemente os restaurantes, todos, porque não conseguimos manter as equipes sem faturamento. E apesar de sermos referência de excelência no ramo, para o público em geral nós não existíamos. Quem sabe o nome do restaurante de um hotel em que se hospedou? Muitos pensam que é da própria rede hoteleira, o que nem sempre é. O mesmo com órgãos públicos e escolas. Então, para nós, o delivery não funcionou.

Enfrentei um nódulo perturbador na mama direita, que após muitos exames, mamotamia e momentos de tensão, mostrou-se calcificado, exigindo acompanhamento semestral. Perdi dois primos de Covid, uma tia, dois amigos e pais e familiares de tantos outros. Chorei com meu povo italiano, com brasileiros desconhecidos, com chineses, europeus, orientais, com o mundo.  Meus filhos cresceram, física e emocionalmente.

“Não ensinamos nossos filhos a viverem sem luxo”, disse meu marido naquela noite, quando a primeira peça do nosso dominó dourado despencou.

“Mas lhes ensinamos generosidade e honra”, eu tinha-lhe respondido. E foi exatamente o que os manteve íntegros e firmes.

Nesta manhã comum, após vê-los seguirem a rotina de dois jovens adultos, detive-me na porta, em êxtase, antes de começar os afazeres da casa.

Comecei a trabalhar como atendente de usuário de internet, em casa, em um pequeno provedor de internet que já tínhamos, o menor CNPJ do grupo, justamente aquele que ficava nas mãos de gerentes, a empresa que quase não lembrávamos que existia. Tornou-se não só a principal, mas a única, com o fechamento do nosso conglomerado de empresas. A empresa de onde preciso extrair, com todas as forças, minguados recursos. Meu marido ressuscitou seu diploma de engenheiro e arregaçou as mangas enfrentando uma nova jornada, aprendendo e se atualizando com os mais jovens. Várias experiências como telefonista de empresa de internet dariam um livro. Um confessionário bizarro e reflexivo de como as pessoas se comportam mal perante a mínima frustração de um momento. Ficar sem internet, mesmo por falta de pagamento, transforma as pessoas e as rebaixa a um nível miserável de existência. Claro que às vezes a urgência dos clientes envolve trabalho, palestras e assuntos importantes. Mas a grande maioria histérica advém de viciados em jogos e videogames. Desenvolvi pânico, um acesso momentâneo de hesitação, sudorese e taquicardia a cada som do telefone emitido da central do assinante. Então, encontrei uma solução, ele vibra e eu respiro e atendo. Mas o som... este virou um gatilho para que um mal estar súbito tome conta de mim, então desativei-o. É tão forte que dias atrás eu o ouvi em um supermercado, e quase desencadeei uma crise, até que o som pertinente silenciou-se completamente, quando o senhor ao meu lado atendeu o seu celular.

Às vezes, flutuo esperançosa, em meio às ondas das mudanças em minha vida. Noutras, sou traída por um soco arrebatador.

E em um ou outro momento, confesso que cheguei a pensar numa loucura. Que um ser maligno invadiu o sistema da minha vida, bagunçou tudo, trocou a senha e me roubou definitivamente o acesso ao portal.

“Uma vida roubada”, é o pensamento fugaz que me acomete, raramente. Eu diria... uma ou duas vezes ao ano. E ultimamente, quase liberta dessa ideia, tenho sublimado em um propósito de superação íntimo, quase um segredo.

Dia após dia, quando olho ao redor, a casa para limpar e os insultos dos clientes mal-humorados, ácidos com suas próprias vidas, à procura de um depósito para os seus ataques de fúria, extraio uma força sobre-humana para prosseguir.

Então contemplo o sol, penso em minha tia que ressuscitou da covid-19 enquanto a outra não teve a mesma sorte, após ambas serem extubadas. Em minha prima, que chegou muito mal ao hospital com saturação 92. Isso porque durante 5 dias ficou indo e vindo do hospital, no auge da Covid-19, no final de 2020. Os médicos lamentaram e informaram que não tinham leito para ela, pesquisaram em vários hospitais, em vão. Então, um anjo, que estava na Semi-UTI, que tinha melhorado um pouco, cedeu-lhe o leito, porque o caso dela, naquele momento, era mais grave que o dele. Dias passaram-se, dez. Nesse período, os próprios médicos não sabiam informar o prognóstico da minha prima, porque eles também não conheciam direito a doença, mas ela teve uma leve melhora, sobreviveu ao risco de morte. E foi justamente neste dia, quando o risco de morte foi descartado, que a mesma enfermeira que intercedera por ela junto ao anjo, informou-lhe que ele agora tinha piorado muito e precisava do leito dela, com urgência. “Você não está pronta para descer para o quarto, mas a urgência nos leva a transferi-la”, disse-lhe a médica. Entre a dança mórbida de leitos de UTI e Semi-UTI do hospital, ambos sobreviveram. Enquanto isso, a fila para vagas em hospitais era gigante e centenas de pessoas perderam suas vidas na fila por um leito de UTI. Teve um caso de um médico, proprietário de hospital, que também morreu nessa fila... Outros tentaram conseguir vagas de leitos de hospital com mandados de segurança, mas nada, nada podia ser feito.

Penso em meu irmão médico que enfrentou com bravura o drama de todos os profissionais da saúde, em atos de generosidade como pessoas comuns, que fizeram compras de supermercados para seus vizinhos idosos, em ondas de solidariedade que uniram o mundo, e ouço o canto dos pássaros. E uma poesia se forma, geralmente inspiradora.

Continuo a escrever e transcrever a vida com suas paixões e seus desafios. Não é bem paixão, é mais profundo. O meu resgate. Mergulhar no enigmático mundo dos arranjos bem e malsucedidos das letras e vogais transporta-me ao além e ressoa uma fortaleza.

É quando finco os pés no chão, aposso-me do aqui e agora e sigo. Descortinam-se mistérios e segredos. Um conto aqui, uma crônica ali, e um livro sai do forno.

Recentemente, uma notícia enlaçou-me com total vivacidade. Fui galardoada com um importante prêmio literário nacional.

Enquanto me apronto para a cerimônia de premiação, contemplo-me no espelho, orgulhosa. Minhas rugas, o olhar maduro da mulher que um dia foi uma menina, comum. Encarei minhas dores, confrontei minhas perdas e as aceitei. Descobri-me bela! Não invencível, mas capaz.

Apago a luz e prossigo.

No palco, chamam-me! Caminho, excelsa.

Chego aonde, por ora, planejei.

Luciane Mustafá é Licenciada em Música e Bacharel em Musicoterapia, EMAC-UFG, e especializada em Gestão de Pessoas-UGF. Possui romances e contos publicados, e é membro da atual diretoria do Sindescritores DF. O romance “Uma Vitória Interrompida”, 2020, recebeu MEDALHA DE OURO, 24º International Latino Book Awards (ILBA) e a coletânea de contos “Jovens & Sábias”, 2021 recebeu MENÇÃO HONROSA no mesmo concurso. Ganhou 2º LUGAR com a crônica “Dama Literária-Folhetim Imperial”, Prêmio Antologia 200 Anos de Independência, 3ª Ed, SECDC/SECULT/MTur-2022. O primeiro romance "O Despertar de uma Sinfonia" foi publicado em 2015.

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