Vou ali
Luciane Mustafá
Helena beijava e abraçava a irmã sem cessar, enquanto lágrimas brotavam desenfreadamente de seu rosto.
À medida que sentia sua fragrância outrora tão característica, tentava entender por quanto tempo não se viam. Será que tiveram algum estresse que culminara naquela separação tão silenciosa e sofrida?
“Deus, o que houvera conosco? Não me lembro de alguma briga! E esse cheiro tão familiar e aconchegante? E o sorriso? Dois, cinco, dez anos?”, analisava em silêncio.
Não! Era uma saudade causticante, sofrida, cultivada por pouco mais de vinte e cinco anos!
Mas aquela não era hora para questionamentos nem para procurar razões ou respostas incertas, duvidosas... era, sim, o momento de desfrutar aquele reencontro há tanto esperado e ansiado.
Em meio a lágrimas e risadas, Helena falava-lhe orgulhosamente dos filhos, netos e bisnetos. Compartilhava as peraltices das crianças em suas fases mais engraçadas. Não entendia, contudo, por que a irmã se referia às próprias filhas como adolescentes, com treze, quatorze e dezessete anos, enquanto ela se lembrava muito bem das sobrinhas já adultas.
Embevecida com a saudosa companhia da irmã, Helena sentia-se transportada à magia da infância, quando se sentavam em torno da mesa de brinquedo debaixo do pé de goiaba e brincavam com as louças mais elegantes da mãe. Brincavam que tomavam chá em louças inglesas ornamentadas com ouro e se vestiam elegantemente como as princesas. Sonhavam e imaginavam como seriam quando adultas, com seus maridos e filhos. Cada uma com sua família que deveria ser linda e feliz! E, acima de tudo, elas estariam lá, de mãos dadas, uma apoiando a outra!
Ester falava de sua pianista, de sua aspirante a psicóloga e de sua tenista. Mas não mencionava a pianista que se transformara em escritora, ou a possível psicóloga que se tornara médica, tampouco a tenista que seguia a próspera carreira de empresária... Curiosamente, também não se referia a dois pares de olhinhos incríveis que encantavam a muitos, filhos da primogênita. Falava do marido afetuosamente, mas pareciam fatos tão antigos...
Helena nutria um imenso amor pelas sobrinhas e, por um momento, quase se sentiu ressentida com Ester, que parecia um tanto alheia às últimas novidades nas vidas da família.
O primeiro romance da caçula era aclamado como uma obra-prima pela crítica! A médica desenvolvia um maravilhoso trabalho com pacientes terminais de câncer e seus familiares, e a empresária ganhava, anualmente, troféus como destaque de melhores negócios a nível nacional e internacional. Mas o maior prêmio era a chegada daquele casalzinho de gêmeos que encantava a todos com suas gracinhas.
Às vezes, Ester também não entendia porque tanto afastamento entre ela e a irmã e permitia, mesmo que por um instante fugaz, um misto de mágoa e tristeza transformar seu semblante de alegria.
Em meio a tanta nostalgia, Helena assustou-se com certa rítmica em sua respiração e um leve movimento dos pés. Pareceu sentir o sangue pulsar nas veias constatando certa... vivacidade!
Helena lembrou-se de quando foi resgatada de um afogamento quando menina, e de como sua boca ingeria água salgada à medida que tentava, em vão, respirar o ar inexistente no chacoalhar das ondas cinzentas, borbulhantes e furiosas da praia de Iracema em Fortaleza em meio a gritos angustiados. E de como, repentinamente, tudo se tornara escuro e calmo. Silencio total. Escuridão. A urgência desesperada em buscar oxigênio deu lugar a uma paz nunca antes experimentada. Seu corpo, reduzido a dois pares de olhos, como os personagens de alguns desenhos animados, captaram em meio à negridão total, um ponto de luz longe, muito longe... Intenso. E uma vontade, um desejo decisivo de se aproximar daquela luz e se perder nela... ou se achar?! Não havia tristeza nem lamentações. A luz transmitia uma paz tão grande, imensa, que conseguia abranger e ultrapassar todos os encantos mágicos e felizes que costumam permear a vida de uma criança feliz, de apenas sete anos. Não tinha certeza, mas pareceu sorrir enquanto caminhava, ou flutuava?, para a luz ofuscante.
Então, quando seu corpo começou a irradiar pontos luminosos, e sentiu sua alma e seu corpo inexistente, foi sugada por uma força poderosa e obstinada. Havia uma energia determinada puxando-a de volta para a escuridão. Para bem longe daquela luz irradiante e mágica, a luz que emanava uma paz que até então ela jamais tinha experimentado.
E em meio à escuridão assustadora, que a comprimia por todo lado, Helena começou a sentir novamente seus pés, suas pernas, seus pulmões doloridos. O estômago estava completamente enjoado e todo o seu corpo sentia um grande mal-estar. Tontura, a cabeça latejante e muitas náuseas. A boca está salgada, muito salgada e... Começou a tossir. Enquanto recebeu os primeiros socorros de sua madrinha, médica especialista em emergência cuja respiração boca a boca lhe salvara, sua tosse se intensificou e ela perdeu os sentidos. Ao acordar, estava em um hospital rodeada da família e da madrinha heroína, que a impedira de conhecer aquela luz deslumbrante. Meio envergonhada, meio assustada, por ora lamentou ter sido resgatada da magia daquela luz que irradiava paz e serenidade. Depois, olhou ao redor. Viu a mãe, a pequena Ester, que chorava desolada com a possibilidade de perder a irmã, o pai. Fechou os olhos e agradeceu. Aquele teria sido um dia triste, carregado do cheiro da morte, que tinha se transformado em momento de heroísmo e celebração.
Como aquele momento de deleite, que agora Helena vivia ao lado da irmã. Ela sorriu olhando para Ester.
Mas não conseguiu disfarçar a ansiedade, porque algo diferente estava acontecendo, e ela não sabia o quê. Sentiu-se revigorada, renascida!, como havia muito tempo não se sentia. E os pulmões... Ah, pareciam fortes, saudáveis, em plena atividade. Não lembrava muito coisa, aliás, não se lembrava de nada, mas parece que estavam adormecidos. Concentrou-se na plena atividade dos pulmões, que pareciam se redescobrir... Sentiu o sangue pulsar nas veias obedecendo a um ritmo natural e constante.
Era tanta novidade que, por um instante, Helena achou graça em brincar com a plena atividade dos seus órgãos vitais.
Uma respiração profunda reverberou energia nova a todo seu ser. Uma restauração.
Em meio às risadas saudosas da irmã e à alegria que só um momento como aquele proporcionaria, teve a impressão de captar algumas vozes distantes, em ecos, mas igualmente familiares e importantes.
“Mããããããããeee!”
“Vóóóóóóóóóóó!”
“Mãezinha, estamos aqui...aqui...aqui! Precisamos da senhora...ora...ora.”
“Pessoal, me desculpem, sei que estão todos emocionados. Mas, por favor, precisamos que se retirem...tirem...tirem. Agora queremos que ela descanse...canse...canse.”
“O senhor pode nos dar alguma previsão...ão...ão? Já faz tantos meses...eses...eses.”
Enquanto sorriu para a irmã, Helena percebeu um toque úmido sair sobre seus braços, como gotas úmidas, mas nada viu. Também teve a impressão de sentir um carinho gostoso em sua cabeça e alguns lábios beijando-a no rosto. Aquilo era bom. Muito bom. Ela sorriu.
Silêncio novamente. E aquele doce olhar de Ester, a irmã cuja companhia lhe fez tanta falta em um lamento sem fim.
Por um momento, Ester, alheia às informações recentes, percebeu também uma repentina mudança pairando sobre elas. Temerosa por algo comprometer aquele grande reencontro, sonhado por décadas, continuou a falar sobre assuntos diversos. Aquela a irmã que lhe conhecia todos os suspiros, os segredos, a única pessoa a quem ela confiava tudo. E aquele reencontro era... presente da vida. Ou dos céus!
Helena sentiu um estalo doloroso e reverberante em seus ouvidos e percebeu algo sendo retirado de suas narinas. E aquela respiração marcante, que contagiava todo o seu ser. Era bom sentir aquilo novamente.
Juntas, ela e a irmã tomaram chá, enquanto riam e partilhavam segredos quase esquecidos da mocidade. O primeiro beijo, o primeiro amor, a primeira carícia...
Ester falava das peraltices inocentes da mocidade. A descoberta do primeiro amor, um quase romance, secreto, escondido, nunca antes compartilhado... Helena achou graça na naturalidade e empolgação da irmã em partilhar segredos e casos...
Outras vezes, Ester reviveu as aventuras vividas com o marido. Contou, pela milésima vez, como se conheceram em uma viagem audaciosa, que ela tinha feito, sozinha, ao Rio de Janeiro, cansada dos comentários maldosos daquela época, em que uma moça com seus trinta e cinco anos era chamada de solteirona. Apenas o pai, músico, que tocava cinco instrumentos, poliglota — dominava oito idiomas —, escritor e professor, entendia a filha, que parecia um pássaro a querer explorar a vastidão do mundo... Seu foco era estudar, viajar e seguir sua próspera carreira de diretora financeira na secretaria da fazenda do governo. Sabia que chegaria o momento oportuno de ser atingida pelo cupido do amor. Por isso, Ester tentava se manter alheia aos fuxicos e intrigas típicos de uma cidade onde todos eram o filho ou o sobrinho ou o neto do vizinho ou do professor ou do melhor amigo do pai...
Ester conheceu o marido, Renato, no Corcovado, quando o vento derrubou seus óculos apoiados em sua cabeça e foram parar nas mãos daquele homem charmoso, gentil e de voz sensual. Estavam no mesmo hotel, mais precisamente no badaladíssimo Copacabana Palace, o que lhes permitiu um romântico jantar naquela mesma noite. Olhares trocados e a sensação de que haveria uma história a partir dali.
Ele, fugindo de São Paulo, pegara o carro sem destino havia cerca de dois meses, andando como andarilho, perdido em sua sufocante dor. Fora parar na Cidade Maravilhosa uma semana antes, só para descobrir para onde seria a próxima fuga. Mas, sensivelmente, percebia que não tinha como fugir. A presença de Regina estava impregnada em sua pele, no suor, e seu cheiro exalava a dolorida saudade desde que ela se fora em uma curva na Dutra, obrigando-o a cancelar, definitivamente, a cerimônia matrimonial que ocorreria em duas semanas, e levando consigo os sonhos e planos compartilhados nos últimos cinco anos de sua vida. Tudo o que Renato entendia como sua vida.
Mas aquele olhar, no entanto, assemelhava-se a uma fresta aberta por um anjo a lhe socorrer. E jantares como aquele se repetiram sem que fossem planejados com grandes expectativas. Ressurgia, assim, um fio de esperança, um sentimento novo de paz e restauração, intimamente ligado à urgência de se refazer e reconstruir o que ele conhecia antes como o seu mundo. Em pouco mais de um ano, haviam-se tornado aqueles casais apaixonados cujo amor cura traumas e dores. E foram felizes.
Helena divertia-se com a irmã ao ouvir relatos tão familiares e conhecidos dos preparativos para a tão aguardada cerimônia matrimonial, os votos que a irmã escrevera e reescrevera centenas de vezes, para finalmente improvisar tudo e recitar um dos votos mais cativantes e emocionantes que uma noiva poderia fazer ao seu amado. Eram um casal ligado por amor, incondicional, cuja base firmava-se em princípios atemporais, como lealdade e fidelidade.
Muitas horas se passam, talvez dias... Não havia tempo, minutos ou segundos. Apenas o deleite da companhia da irmã, grande amiga e a maior saudade de Helena.
Repentinamente, Helena sentiu um arrepio e percebeu, subitamente, as pernas. Conseguia movimentar lentamente, mas sem tanta dificuldade como antes, as pernas, as mãos, e já não sentia tanto frio...
À medida que se sentiu aquecida, protegida e acalentada, lembrou, com nitidez, da filha Patrícia, e de Bianca. Bianca! A bisneta tão aguardada, por ser filha da Amanda, sua neta mais próxima. Vizinhas, compartilharam alguns encantos e desencantos da vida. As fantasias do primeiro amor. Os sonhos de menina, de adolescente, de mulher. A bisneta a quem ela escolhera o nome de Bianca, por rimar com seu apelido de menina, Branca, que combina com criança, dança, esperança.
Helena lembrou-se também dos filhos, Henrique, Tiago e Marcos e de... Pedro! Pedrinho, sua doce criança, seu grande amor. Sua maior dor. Viu-se com trinta e dois anos, com a irmã e os filhos na fazenda do pai. Uma súbita taquicardia e sudorese, tão logo vislumbrou os três filhos maiores voltando da cachoeira com olhos assustados e desesperados. Ela não teve dúvidas. Pedro. E então ouviu através de ecos que os filhos não sabiam onde o caçula estava, havia cerca de dez minutos, desde que deram, juntos, um mergulho e o garoto não emergira. Sucederam-se horas de pânico e pavor. Desespero. Por fim, a dor mais aguda e cortante de uma mãe. Dor que mutila, que escraviza e penetra nos ossos. Descobriram seu menino, preso em uma imensa pedra próxima à margem do rio, em um ponto raso, sem maiores problemas, não fosse o fato de ele ser ótimo nadador e, portanto, muito afoito e desinibido para um rio cheio de armadilhas como aquele.
Helena, permitiu-se, finalmente, o contato com aquela dor dilacerante, negada por todos aqueles anos! E chorou, esperneou, gritou nos ombros da irmã que, sem julgamento, deu-lhe o que procurava — conforto e segurança. Helena permitiu-se, finalmente, enfrentar a crueldade da dor incansável e persistente, decidida a encontrar libertação.
Enquanto foi embalada pelo um manto acalentador dos braços da irmã, Helena viu-se envolvida em um sofrimento corrosivo misturado ao remorso inexplicável e desumano que todo pai sente por perder um filho. Questionamentos e culpa, sua íntima companheira em décadas, sentimentos injustos, mas reais. Sabiamente, Helena foi apanhando cada sentimento nocivo e colocando em um saco, cheio até a boca. Colocou-o aos seus pés, mais especificamente, embaixo da mesa colorida e cheia de flores onde estava com a irmã. Cada fardo que retirou dos seus ombros. E aquilo era bom. Muito bom. Ela sorriu. Um sorriso genuíno, de liberdade plena. E uma imensa gratidão por ser mãe daquele anjo terreno que há muito iluminava os céus... Com o último fardo depositado ao chão, chacoalhou os ombros para se livrar até da poeira ali depositada. Não! Incrustada.
E sentiu raios solares derramando-se sobre seu corpo, uma paz semelhante à que experimentou em sua vida tão familiar antes daquele retorno apavorante dos filhos na fazenda...
As irmãs sorriram uma para a outra, pois não precisavam de palavras para compreender aquele momento libertador, íntimo e pessoal.
Helena lembrou-se do marido, dos netos, netas, de todos os bisnetos. Também conseguiu diferenciar as vozes de sobrinhas e sobrinhos tão queridos. Sentiu saudades. Muitas saudades. Queria estar com eles. Lembrou-se da alegria do seu último aniversário e das inúmeras homenagens recebidas sobre o quanto era amada.
E, novamente, ouviu vozes, mais audíveis e claras. E quase tentou respondê-las, mas ainda não conseguia. Com esforço tremendo, quase abriu os olhos.
“Mãe, estamos aqui aqui aqui!”
“Te amamos, vó vó vó!”
“Tia, nós te amamos amos amos!”
“Vó, a Bianca nasceu ceu ceu. Eu já falei tanto da senhora para ela, eu preciso tanto de que a senhora me ajude a cuidar dela, vó vó vó!”
Lembrou-se da Amanda e dos planos à espera da Bianca. Do irmão e das conversas agradáveis que mantinham diariamente... E sentiu saudades do marido, seu companheiro de anos.
Saciada pelo saudoso cheiro da irmã, sentiu agora saudades do cheiro de casa.
Respirou profundamente. Sentiu mãos tocarem as suas e percebeu seus pés sendo conduzidos a movimentos repetitivos e sincronizados. Ouviu uma voz diferente sobre manter as pernas esticadas e elevadas e algo sobre... massagens. Seus olhos estavam leves e já não pesavam tanto.
Ao se distanciar um pouco da mesa com flores, viu o sorriso de Ester envolta uma luminosidade magnífica, em uma luz que emanava uma paz inexplicável.
Helena tomou seu último gole de chá, apoiou sua xícara no pires e não teve dúvidas.
Era chegada a hora.
Caminhou!? Sim, caminhou! Foi até a irmã com o coração agradecido por serem tão cúmplices e amigas, pelo amor que sempre as uniu e teve certeza de que nada, nem distância alguma apagará esse sentimento tão nobre e sublime — a força do amor.
Com a restauração que só um encontro como aquele poderia proporcionar, Helena, com os olhos marejados, revigorada e restaurada, com seus pulmões e batimentos cardíacos em plena atividade, abraçou amorosamente Ester, deu-lhe um íntimo e único beijo no coração, enquanto lhe sussurrou:
Meu amor, vou ali, e não sei quando volto!
Luciane Mustafá é Licenciada em Música e Bacharel em Musicoterapia, EMAC-UFG, e especializada em Gestão de Pessoas-UGF. Possui romances e contos publicados, e é membro da atual diretoria do Sindescritores DF. O romance “Uma Vitória Interrompida”, 2020, recebeu MEDALHA DE OURO, 24º International Latino Book Awards (ILBA) e a coletânea de contos “Jovens & Sábias”, 2021 recebeu MENÇÃO HONROSA no mesmo concurso. Ganhou 2º LUGAR com a crônica “Dama Literária-Folhetim Imperial”, Prêmio Antologia 200 Anos de Independência, 3ª Ed, SECDC/SECULT/MTur-2022. O primeiro romance "O Despertar de uma Sinfonia" foi publicado em 2015.

